Uma crônica paisagística da ZN (Zona Norte) como
acontecimento pictórico que se realiza na própria fruição estética da mesma: eis
a obra.
Desprovidas de um tempo cronológico que inclui um passado, um
presente e um futuro precisos, a pintura paisagística; assim como a paisagem de
um conjunto de áreas da ZN como o Rio Comprido, Catumbi, Rocha, São Cristóvão,
Caju, Del Castilho, Inhaúma, Pilares, Higienópolis, Bonsucesso, Manguinhos,
Maré, Abolição, Engenho de Dentro, Encantado, Água Santa, Barreira do Vasco,
Pavuna, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, coexistem num tempo mítico e
impreciso: indeterminado e desmedido, somente capaz de ser percebido
poeticamente como fenômeno singular e autônomo, independentemente da marcha
inexorável do tempo histórico: das grandes obras rodoviárias que estupram o Rio
de Janeiro em sua marcha para o progresso.
Assim como esses lugares da ZN desacontece como lugar do
progresso, “a pintura é fatal” (G. Braque). Ambas tangenciam o tempo
cronológico. Resistem como cultura e linguagem respectivamente, permitindo-se
perceber apenas no tempo mítico da contemplação e da fábula: o tempo da
crônica, como quer Deleuze. E no caso específico deste trabalho, trata-se da
contemplação de paisagens consideradas como fora daquilo que caracteriza a
ciade do Rio de Janeiro, ou seja, paisagens que não se encontram na categoria
de “cartões postais” da cidade.
Todavia, a contemplação dessas paisagens da ZN do Rio, ora em
questão é oposta àquela que se produz na indústria do espetáculo midiático, por
meio de um voyeurismo fugaz, histérico, marcado comumente pela
banalização da violência, exposta diariamente ao cidadão comum, que sentado
confortavelmente em sua sala de jantar, tudo assiste no noticiário de TV, impassível
e impotente.
Neste trabalho este telespectador é representado pela sua
própria ausência, nas cadeiras e mesas vazias pintadas à margem das cenas. De
um lado ou de outro da tela, esses prosaicos arranjos de mobiliários típicos
dos interiores das casas aburguesadas simbolizam a indiferença e a impotência
apática do cidadão comum.
Nesse sentido, a melhor forma que encontrei como artista
visual para pensar, perceber, e visualizar as paisagens desses lugares da ZN, e
dá-los a ver fabulados como pintura, que remete do ponto de vista de uma
classificação dentro da história da arte mais genérica aos movimentos
“Impressionista” e “Pós-Impressionista”. Esses movimentos surgidos na segunda
metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, no seio da
modernidade e da industrialização européia, com o passar do tempo se
configuraram como “escolas” de pintura se espalhando pelo mundo ocidental,
sofrendo adaptações singulares em cada país, muitas vezes exageradas e mal
assimiladas, resultando daí, no entanto, frequentemente pintores que criaram
uma pintura muito pessoal.
No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, essas áreas da Zona Norte e mais especificamente do Centro estão
associadas a pintores paisagistas como Antonio Parreiras, Eliseu Visconti,
Lucílio e Georgina de Albuquerque, Rodolfo Chamberlland, Gustavo Dall’Ara, irmãos
Timótheo da Costa, Carlos Oswald, Bustamante Sá, Gastão Formenti, Manuel
Santiago, pintores do Núcleo Bernardelli, e outros artistas, como o desenhista
e gravador Oswaldo Goeldi; todos muito importantes como cronistas visuais das
grandes transformações “progressistas” do Rio de Janeiro, desde o começo do
século XX, no Governo do Prefeito Pereira Passos, com a abertura da Av. Rio
Branco, e mais tarde, com o Plano Agache, o Desmonte do Morro do Castelo e a
abertura da Av. Presidente Vargas.
Todo esse pensamento urbanístico reincidente que provém de um
olhar das classes abastadas da população, as elites pensantes, os políticos em
geral, privilegiou a ideologia rodoviarista (a abertura de grandes avenidas,
viadutos e túneis), em detrimento a um projeto mais amplo e mais complexo que,
além de levar em conta as questões sócio-culturais e patrimoniais da cidade, tentasse
também resolver sobretudo a questão da carência de habitação, que atinge, ainda
hoje e cada vez mais, dramaticamente, as classes menos favorecidas. Definitivamente
no Brasil, assim como no Rio de janeiro não existe, de fato, uma política
habitacional digna desse nome.
Em outras palavras, todas essas obras foram pensadas e executadas
exclusivamente privilegiando o capital.
Essas intervenções a que nos referimos acima se consolidam na
segunda metade do século XX com o Plano Doxíades, com a abertura dos túneis e
viadutos que cortam o Catumbi e o Rio Comprido, e mais tarde as Linhas Vermelha
e Amarela. Nesse momento da história da cidade (2012), a sanha rodoviarista continua
associada ao capital financeiro internacional em projetos articulados com as
grandes corporações e pretensamente ligados à criação de novas centralidades
para a cidade, como o Porto Maravilha. Rodoanéis, túnel da Covanca, em
Jacarepaguá, expandindo a fronteira urbana do Rio rumo a Guaratiba complementam
esse macroplanejamento.
Com efeito, o meu trabalho como artista visual foi associar a
minha própria memória afetiva, seja como morador da ZN por dezoito anos da
minha vida, seja mais tarde como arquiteto urbanista, nas minhas andanças por
alguns desses lugares, com impressões e sensações visuais diretas que eles me causam agora,
sem me deixar levar por quaisquer tendências ou modelos estéticos que comumente
têm sido apresentados como “contemporâneos”.
A solução plástica que encontrei e que me parece que responde
e corresponde às sensações, de um modo geral, que senti ao longo do trabalho
surgiu da prática direta da pintura dentro do atelier, com base em anotações e
estudos feitos o pastel oleoso em papel formato A-4, sobre colagens e desenhos
realizados de memória que remetiam incidentalmente a essas escolas que provém
do Romantismo da passagem do século XVIII para o XIX e das primeiras vanguardas
que se sucederam da segunda metade do século XIX até a primeira metade do
século XX: Impressionismo, Pós-Impressionismo, Expressionismo.
Nesse sentido, posso compreender e mesmo assumir como atitude
e partido conceitual deste trabalho, a revisitação de técnicas e soluções estéticas
já adotadas pelos pintores, acima citados, sobretudo os que pintaram a cidade
do Rio de Janeiro até a metade do século XX, agora
porém trabalhadas em telas de grandes formatos com novos materiais e
novos procedimentos muito diferentes das tradicionais tinta a óleo sobre a tela
de linho cru, usadas comumente por aqueles pintores.
Penso que, longe de celebrar um saudosismo estético, essa
“repintura”, ou “pós-produção, no sentido de uma mixagem de clichês
rearranjados de maneira diferente por mim, traz de novo com ela, repõe na
cena artística deste começo de milênio, narrativas bem humoradas, satíricas,
retomando um colorido assumidamente dissonante, que provém em sua gênese dos
pintores do Veneto Renascentista.
Juntamente com essa preocupação formal de rever o problema da
harmonização de uma multiplicidade de coloridos muito contratantes mantendo, no
entanto, algumas convenções clássicas do paisagismo, o presente trabalho
pretende somar esforços e contribuir para a discussão da pintura e seu papel
como linguagem plástica dentro do contexto das artes visuais, como imagem na
atual fase da modernidade, assim como avaliar como sua potência como meio de
expressão artística e capacidade poética para retratar a paisagem dessas
regiões inexpressivas da ZN do Rio de hoje, permitindo exercer minha melhor forma
de pensá-las, senti-las, bem como de dá-las a ver, criticamente, ao público.
Orlando Mollica
Abril - Maio/2012
Canto de Sabiá na Boca do Túnel (1,82 cm X 1,30 cm)
Corcovado escalavrado (40
cm X 1m)
Giverny em Acari (1,82 cm X 1,30 cm)
O Grande Devaneio de Cabral (1,82 cm X 1,30 cm)
Porto das mil maravilhas (80
cm X 1m)
Rosas na linha vermelha (40
cm X 1m)
Tráfego, balões, túnel e viaduto (1,82 cm X 1,30 cm)
Amigos que foram dos amigos (60
cm X 1m)
"A ronda na favela" d'après Dall'ara (1,82 cm X 1,30 cm)
Botando o boi na sombra do Sumaré (1,82 cm X 1,30 cm)