Quem sou eu

Arquiteto e Urbanista, Artista Plástico, caricaturista com publicações no Pasquim, Globo, Jornal do Brasil, Jornal do comércio, Opinião, Playboy e outros. Capas e ilustrações para livros, editoras ZAHAR, José Olympio, FTD e outras. Prêmio de “Ilustrador do Ano”, Clube de Criação – S.P - 1989, Prêmio da Fundação Nacional do Livro “Melhor Ilustração Infantil" - 1989. Mestrado e doutorado em comunicação ECO-UFRJ. Professor adjunto da faculdade Santa Úrsula, de 1975-2000. Professor de desenho e pintura da Escola de Artes visuais do Parque Lage com o curso "Desenho Contemporâneo: produção de sentido e narratividade" - autor do livro "Arte, Artistas e Arteiros" 2011 (versão digital)Editora Gato Sabido - www.gatosabido.com.br E-mail: orlandommollica@gmail.com

quarta-feira, 27 de abril de 2011

José Maria Dias da Cruz - Troca de emails

Autor: Orlando Mollica - "P.a 23/24", 2010, acrílica sobre tela, 125 x 190 cm



Autor: José Maria Dias da Cruz - 'Vórtice', 2004, óleo sobre tela, 110 x 140 cm


Mollica



Você, como sempre disse, me surpreende pelas mudanças e estas agora me pareceram bem radicais. Nunca imaginei você às voltas com naturezas mortas, ainda mais nos passando a impressão de que são produtos de uma longa maturação, de anos até. As questões espaciais que você procura resolver são bem complexas, pois temos simultaneamente um espaço lá, albertiano, perspectivado, já que o suporte é uma foto; um espaço ali, e neste prevalece a pintura, no qual os gestos têm uma enorme participação quando quase anulam os objetos representados com vigorosas pinceladas, (o banco da foto exemplifica bem isso com quase como uma mancha jogada ao acaso que desrespeita os contornos do objeto, com uma coloração avermelhada alaranjada e alguns semitons cobrindo o assento); e por último um espaço aqui, na medida que nos coloca como testemunhas no sentido de conciliador das contradições daquelas duas representações espaciais e aqui temos claro a utilização da lógica do terceiro incluído. Para mim é neste último que a cor tem seu papel mais curioso no trabalho. Você faz que nosso olho não se fixe em um determinado lugar dando-nos a liberdade de olharmos de acordo com o ritmo que escolhemos ou, se você quiser, nos permite ver pelos intervalos. Por exemplo, ainda o banco com a pincelada avermelhada alaranjado. Ao lado um azul claro, a cor oposta e logo acima uma mancha esbranquiçada. São muitas as cores de passagem e são essas que permitem vermos pelos intervalos sem nos perdermos das cores iniciais que mais ativam nossa percepção. Como você mesmo diz, além do mais, é um olhar crítico para essas imagens espalhadas pelas luxuosas revistas de arquitetura e decoração dirigidas para um público específico, e por isso totalmente vazias para quem pretende usar um olhar prospectivo. Certamente, como subproduto do neoliberalismo, contenta-se em um olhar que considera o simples aspecto. A partir daí, dessa sólida construção plástica, você permite nos fazer refletir, nos incentivando a estudar ao mostrar como vai se formando um nexo no nosso imaginário a partir do qual podemos compreender a complexidade cultural de nosso país, desde o período colonial até a contemporaneidade considerando, inclusive, os artistas estrangeiros que aqui aportaram no século XIX.



Um forte abraço

JM


Oi Zé, Grato pelos comentários. São sempre observações muito pessoais e por isso mesmo muito valiosas, porque se assentam num processo de reflexão sensível e vivencial com a imagem, afora o conhecimento teórico sólido adquirido após muitos anos de trabalho. Tudo isso, como sempre, com a sua marca pessoal, o que faz o comentário sair completamente do óbvio, de tudo o que não acrescenta nada, ou então de não ficar preso a uma cartilha qualquer considerada aquela que é importante no momento da moda atual, para meia dúzia de críticos com cabeças feitas de fora para dentro: críticos de ocasião.




O trabalho tem sido desenvolvido com muito empenho e sinceridade, evitando soluções fáceis, e considerando que tenho que lidar com a imagem fotográfica impressa para incluí-la como pintura, mesmo às custas de criar situações dentro de uma tradição ilusionista, que faço questão de enfatizar, até porque é parte intrínseca da história da pintura. Tratar o "campo pictórico" como um jogo complexo de modos de olhar foi uma das coisas que aprendemos com Leonardo, Manet, Monet, Gauguin, Cézanne, Braque e muitos outros. Todas as tentativas de acabar com a pintura passaram pelo discurso que desconhece o poder que se tem ao saber tratar do plano pictórico como um território povoado de virtualidades, de possibilidades. Tentar planarizá-lo ou tridimensionalizá-lo é de alguma forma uma renúncia àquilo que a pintura pode oferecer de melhor no campo das artes, além da sua especificidade. Atualmente estou pintando em grandes formatos, radicalizando essas experiências.




Forte abraço

Mollica




(Pedi ao Mollica que me enviasse um comentário sobre determinado quadro de Guignard que nos ajudará a mostrar como seu pensamento se articula.)





Zé,


Ai vai mais ou menos transcrito na forma em que escrevi na minha tese de doutorado sobre "A Família do Fuzileiro Naval”, Guignard, 1930




Certamente é em Alberto da Veiga Guignard, em sua A Família do Fuzileiro Naval que o imaginário proveniente da obra de Gilberto Freyre aparece com toda sua vitalidade e limpidez. Nesse quadro, o pintor define basicamente dois planos distintos: o do interior e do exterior, do lado de fora da janela dupla de venezianas de um casarão com ares franceses, que insinua ser uma habitação típica da aristocracia que descende dos barões do café.



Alberto da Veiga Guignard - A família do fuzileiro naval – Col. Gilberto Chateaubriand.





No seu interior, confrontando o espectador, aparece uma família de mulatos, que posa de maneira hierática como o faziam as grandes famílias das elites brasileiras tradicionais e históricas, desde os tempos coloniais. Ao centro, Guignard pintou a pequena bandeira do Brasil, empunhada pelo menino e recortes da arquitetura da casa, delimitando os contornos com linhas retas , deixando transparecer ironicamente uma identidade cultural decalcada visualmente, porém recalcada, na prática. No fundo do quadro, no plano externo à casa, para além das janelas, se abre uma paisagem vaporosa, onde as coisas não tem contornos nítidos, quase onírica, lírica, cenográfica, sensual e idealizada como uma espécie de paraíso celestial, que contrasta violentamente com o arranjo do primeiro plano, quase geométrico do grupo familiar,contornado fortemente pelas linhas pretas, cuja formalidade e o engajamento das vestes pressupõe uma inserção social absolutamente ordenada.
Isso tudo aparentemente acontece porque a natureza artificialmente paradisíaca, a paisagem verde rósea do fundo, paradoxalmente, contamina e organiza plasticamente os personagens, atribuindo-lhes um caráter meramente, ou melhor, altamente alegórico: simulacro de uma cidadania que se dá apenas no plano virtual, de um país que, mesmo atravessando um período político de transformações profundas, quanto mais se moderniza, mais precisa se manter no passado para que se mantenha fiel à sua cultura, à forma como foi moldado pela colonização portuguesa.O país apregoado por Freyre, mesmo que incorporando à sua identidade aspectos da miscigenação cultural, representada sob os mais diversos aspectos, como sendo a terra do "mulato inzoneiro" - como cantou Ary Barroso na sua Aquarela do Brasil, composto em 1939, e considerado pelo então ditador , Getúlio Vargas um ícone de brasilidade genuína, cooptada pelo seu desenho de nacionalismo, até porque se agregava adequadamente na sua política de inclusão das massas mestiças, pobres, desprovidas de qualquer tipo de cidadania e oriundas em sua grande maioria do campesinato. Pelo menos para Guignard neste quadro, o Brasil não conseguiu se estabelecer naquele tipo de presente que tentava representar sua modernização, e até pelo contrário, se paralisa numa perspectiva de um futuro, de uma virtualidade quase sobrenatural, antecipando visualmente a concepção do "Brasil, país do futuro", tal como foi enunciada por Stefan Zweig (1941): uma nação em permanente estado pretérito: um país transcendental.Na visão de Guignard, dentro do contexto do quadro A Família do Fuzileiro Naval, o Brasil nunca poderá cortar completamente suas raízes coloniais. Quanto mais futuro tiver, mais no passado deverá se manter.Eis o paradoxo que esse pintor genial nos legou.




Grande abraço


Mollica